Com apoio da Funcap, pesquisadores avaliam impacto do uso abusivo de ansiolíticos na vida das mulheres

31 de janeiro de 2018 - 13:31

Por Nerice Carioca

Estudo divulgado em 2017 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que 18,6 milhões de brasileiros convivem com transtornos relacionados à ansiedade, o que corresponde a 9,3% da população. Nesse cenário, as drogas benzodiazepínicas (remédios como o diazepam, por exemplo) ganham destaque como substâncias destinadas a tratar os quadros ansiosos, devido aos seus efeitos de sedação, diminuição da ansiedade e relaxamento muscular.

Tendo em vista que os benzodiazepínicos estão entre os medicamentos mais usados no mundo, pesquisadores da Universidade Estadual do Ceará (Uece) estão estudando os impactos do uso abusivo dessas drogas na vida das mulheres por meio do projeto de pesquisa “Uso abusivo de drogas benzodiazepínicas na atenção à saúde mental: um estudo sobre a vulnerabilidade e a subjetividade feminina”. O trabalho, que tem como foco o estudo da ansiedade, é coordenado pela professora Lia Silveira, do colegiado do curso de Psicologia, e conta com o apoio da Funcap através do edital PPSUS.

De acordo com a pesquisadora, o uso contínuo desse tipo de medicamento tem alto poder de  causar dependência. A partir de três meses de utilização, o risco aumenta em 10% e a partir de 12 meses as chances do paciente se tornar dependente da substância aumentam em 40%. Dessa forma, Lia alerta que a longo prazo os benzodiazepínicos apresentam mais riscos do que benefícios e a pesquisa aponta que o tempo de uso entre as mulheres é bem superior a 12 meses, ficando entre oito e nove anos, em média.

A publicação “Abuso e Dependência de Benzodiazepínicos”, da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira de Neurologia, aponta que 50 milhões é o número estimado de pessoas que fazem uso diário de benzodiazepínicos, sendo maior a incidência em mulheres acima de 50 anos com problemas médicos e psiquiátricos. Além disso, um em cada dez adultos recebem prescrições desse tipo de medicamento a cada ano, a maioria por clínicos gerais.

Trabalho estudou pacientes da rede pública

A fase quantitativa da pesquisa colheu dados de 520 mulheres de Fortaleza atendidas pela rede básica de saúde. Dentre elas, 12 se dispuseram a participar da fase qualitativa do estudo, que consistiu em uma entrevista através da qual, a partir dos dados coletados, a equipe descobriu que os motivos que culminam na prescrição envolviam situações cotidianas, como perdas familiares ou exposição a situações de violência, por exemplo. A pesquisa revelou ainda, que quando o uso de ansiolíticos se dá por tristeza ou perdas, a maioria das mulheres utiliza esses fármacos por mais de dois anos. Considerando que três meses de uso desse tipo de medicamento aumentam em 10% as chances de causar dependência, Lia ressalta que o uso abusivo é caracterizado pelo tempo de utilização excessivamente prolongado.

Para a pesquisadora, as queixas apresentadas pelas entrevistadas não se configuram necessariamente como doenças ou transtornos e não deveriam ser tratados com esse tipo de fármaco. Dessa forma, o tratamento oferecido pelo serviço de saúde para esses quadros precisa apostar em terapêuticas que vão além do uso de medicamentos, como “espaços pautados na circulação da palavra, onde essas mulheres pudessem falar e elaborar formas de lidar com o que as aflige”.

Lia revela que o perfil das mais atingidas pelo uso abusivo de ansiolíticos é formado por pessoas com idade média entre 40 e 53 anos, solteiras, com filhos, baixa escolaridade e sem trabalho formal. Além disso, dentre as mulheres ouvidas pela equipe, 55% não trabalham e mais de 76% têm renda familiar inferior a dois salários mínimos. A pesquisadora afirma que esse perfil está ainda mais susceptível por conta das condições socioeconômicas e da falta de acesso a outros recursos, como terapias baseadas na escuta e/ou  medicamentos de última geração com menos efeitos colaterais, pois esses tratamentos não estão disponíveis pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Para ela, a ênfase na terapêutica medicamentosa se dá por conta do “casamento da ciência moderna com os pressupostos do mundo capitalista”. Nesse sentido, a pesquisadora afirma que, a partir de uma lógica positivista, o sofrimento, que faz parte da experiência humana, passa a ser visto como algo que não deve existir e precisa ser eliminado. É nesse contexto que entram os fundamentos capitalistas baseados na produção e oferta, criando a necessidade de consumo.

Dessa forma, medicamentos como os ansiolíticos surgem como uma mercadoria com promessa de felicidade, escondendo o mal-estar do sujeito e deixando pouco espaço para que cada um invente formas de intervir diante da realidade que o aflige. “No final das contas o que temos não é alguém com menos sofrimento, mas pessoas dependentes da substância para enfrentar a vida”, afirma.

Na busca por resultados imediatos, terapias que não priorizam o uso de medicamentos, como a escuta, são secundarizadas. Ela lembra que as políticas públicas não podem estar a serviço da indústria farmacêutica que, segundo dados da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), teve um aumento de 8,8% no faturamento entre janeiro e novembro de 2017.

Lia ressalta ainda que a formação dos profissionais de saúde “enfatiza o curativismo e uma noção biologicista do sofrimento”, o que contribui para que eles priorizem o uso de benzodiazepínicos para tratar pessoas com problemas psíquicos. Ela afirma que a formação desses profissionais precisa ir além do “modelo medicalizador”, para que eles disponham de recursos que possibilitem tratamentos mais humanizados. A professora afirma que o SUS deveria fornecer para a população as mesmas possibilidades de acesso aos recursos, incluindo tratamentos alternativos ao uso de medicamentos.

Diante dos resultados da pesquisa, onde a equipe constatou que eventos da vida cotidiana que as mulheres que participaram da pesquisa vivenciam é o principal causador dos sofrimentos psíquicos desenvolvidos por elas, Lia afirma que é preciso refletir sobre a realidade dessas pessoas. Para ela, a medicalização do sofrimento dessas mulheres não pode ser a única forma de terapia, pois elas precisam encontrar formas de lidar com a realidade vivenciada.

Para Lia, o apoio da Funcap foi fundamental para o desenvolvimento da pesquisa. Ela destaca a importância da Fundação para o fomento do desenvolvimento científico no Ceará, por se tratar de uma região “que tem menos acesso aos financiamentos das agências de alcance nacional”. Além disso, a pesquisadora evidencia a relevância de estudos como esse, que contemplam e discutem a realidade local, evidenciando as especificidades do Estado.